A MGM/Verve recusou-se a lançar discos de uma banda cujo nome era evidentemente uma contracção de “motherfuckers”, então os Mothers passaram a chamar-se Mothers of Invention – “por necessidade”, como diz Zappa. O novo nome continha a crítica de Zappa às noções de liberdade, uma recusa materialista do idealismo que percorre todo o seu trabalho como uma sombra negra. Arnold Schoenberg afirmou: “A arte não nasce da habilidade, mas sim da necessidade.”
Os Mothers eram compostos pelos Soul Giants – Collins, Estrada, Black – e o brilhante guitarrista Elliot Ingber que mais tarde apareceu com Captain Beefheart sob o pseudónimo Winged Eeel Fingerling. Baseando-se nos conhecimentos de marketing que possuía, Zappa assegurou que a MGM/Verve não afastava os Mothers of Invention.
Se tivéssemos entregue tudo à editora não tínhamos vendido discos. Eles pensaram que éramos uns excêntricos. Uma novidade-a-go-go. Mas não éramos. Tivemos de lhes mostrar formas de ganhar dinheiro com o nosso produto. Desde o princípio que foi difícil convencê-los daquilo que estávamos a falar. Tivemos de os fazer perceber. Primeiro que tudo, eu quis tomar conta da publicidade. Mais tarde, deram-me grande parte das coisas para fazer.
A MGM não tinha ideia de como fazer publicidade underground em certos semanários que podiam ser de esquerda ou ter orientação hippie, qualquer coisa que não se parecesse com os meios instituídos. Fizemos umas sessões especiais – apelando à curiosidade de certas pessoas.
De acordo com o catálogo de vendas da Record World, a MGM estava indubitavelmente a tentar vender os Mothers: “A MGM vai longe com Freak Out! A filial nova-iorquina da MGM lançou uma campanha promocional em massa, que já vai bem encaminhada, para fazer explodir os seus novos colegas musicais do freak-out, os Mothers of Invention.”
Um memorando interno de Jack Maher da MGM para Mort Nasatir, torna claro que a capacidade de Zappa para falar em termos de “produto” impressionou.
28 de Agosto, 1967.
Uma das melhores ideias que Herb Cohen e Frank Zappa tiveram desde que começaram a fazer publicidade, foi o uso dos painéis de publicidade em Sunset Trip.
Fiz um contrato com a Grant Advertising para usar o painel durante os meses de Outubro e Novembro. O preço é $3,200 pelos dois meses. No painel aparecerão todos os discos dos Mothers of Invention desde Freak Out! até We’re Only in It for the Money.
Mais tarde, ao ser acusado de produzir música comercial, Zappa respondeu que sempre tinha tido esperanças: julgara que Freak Out! ia ser um sucesso. James Dillon (um dos faróis da música clássica britânica que defende a “nova complexidade”) afirma que Zappa podia ser um grande compositor mas estava ligado à música rock por razões comerciais... Ao dizer isto ignora a relação dialéctica especial com o comércio que faz a música de Zappa ser tão interessante, o valor de ter alguém com uma estética da Escola de Frankfurt (alguém que compreende as tendências fascistas da indústria cultural) a operar dentro do sistema. Desejar que Zappa adira à música “correcta” é assumir que a música enquanto arte-elevada não tem ideologia, não é viciada pelo papel de garantir um “domínio elevado” à sociedade hierárquica, de fornecer um espelho para a auto-estima da classe média.
Nem a obra de Zappa irá encaixar no esquema clássico do rock: criatividade precoce seguida de vendas e conformismo. Embora muitas pessoas o tentem pregar a essa cruz. A exacta noção das vendas diz-nos tanto sobre os que acusam quanto sobre os artistas que são vilipendiados. O possível investimento espiritual nas individualidades dos artistas é inevitavelmente seguido de desapontamento, porque o que no final do arco-íris estão a arte e o produto e não a tão esperada transformação da vida quotidiana. Enquanto Zappa desenvolve, ao longo das décadas, as suas políticas pequeno-burguesas, temos de reconhecer que elas sempre existiram. As canções de Freak Out!, com todo o seu envolvimento cabeludo e as suas declarações “sem potencial comercial” eram tão comerciais quanto Zappa as conseguia fazer. Comparadas com o R&B pesado dos Muthers no Sinners & Saints (gravado no Mystery Disc do Old Masters Box One) a aproximação é melódica, inflamada, popular no sentido corrente. A banda sonora do filme Mondo Hollywood – um “documentário” titilante da cena freak de Los Angeles, feito em 1965, que devia conter uma aparição dos Mothers até Herb Cohen pedir demasiado dinheiro, obrigando a tirá-los do filme – estava perto: pop estridente/rock impetuosamente glorificado por metais e cordas.
Contudo, hoje, Mondo Hollywood parece uma resposta ultrapassada e datada do mundo do espectáculo ao rock. Freak Out! continua a ser fascinante – não por representar uma alternativa purista mas porque usa o comercialismo contra si próprio. Zappa ainda era capaz de tocar R&B agressivo e desbragado (demonstra-o em “Trouble Every Day”), mas estava demasiado fascinado pela contradição para se limitar a essa base. O olhar afectado e ameaçador de Freak Out!, uma aterradora insinuação de que algo de grosseiro se estava a passar, era brilhantemente coordenado com a organização gráfica da capa do disco e das notas: delineados para suscitar interesse a alguém tão farto da desconexão conformista da escola superior como Zappa. Um disco de blues e composições de vanguarda não conseguiria atingir o miasma de profanação alcançado pela perversão do pop inocente.
Esquece o baile de finalistas, vai à livraria e educa-te se tiveres coragem. Alguns de vós gostam de pequenos comícios animados e robôs de plástico que vos dizem o que devem ler. Esqueçam o que eu disse. Esta canção não tem mensagem. Põe-te de pé e saúda a bandeira.
A MGM viu o potencial de venda do disco e reagiu de acordo com ele. A Record World anunciou:
Bud Hayden, o executivo responsável pela promoção do disco e Tom Wilson, que produziu o embrulho de Freak Out! – dois discos pelo preço de um – já fizeram distribuição em alguns mercados extremamente receptivos e os homens da MGM estão prontos a dar mais um empurrão aos encontros desta semana.
Para cativar as pessoas foram lançados puzzles com a capa do disco.
Os Mothers tocaram no Havai, em São Francisco e apareceram no Swingin’ Time, o programa de televisão de Robin Seymour, a 19 de Julho (“O estúdio inundou-se de telespectadores que tanto diziam que eram espectaculares como horríveis,” disse Art Cevri, o coordenador de talentos) e no Club 1270 de David Prince, a 23 de Julho. A 29 de Julho, no papel de angariador de fundos do Los Angeles Free Press, Zappa organizou a GUAMBO – Great Underground Arts Masked Ball and Orgy.
Um poster desenhado ao estilo psicadélico dos cartões de saudações que Zappa usaria em Absolutely Free dizia: “Realizadores! Tragam o vosso trabalho e mostrem-no. Poetas ergam-se!” Um pequeno aviso revelava o tipo de tabus sociais a destruir. “Aviso: os nossos advogados dizem que não podemos permitir nus totais nas danças públicas.” O crítico do Los Angeles Free Press disse que o concerto não passou de “cinco músicos de federações americanas de cabelo curto, fatos pretos, camisas brancas e laços pretos” a tocar partituras de Zappa ao lado dos Mothers. O concerto perdeu dinheiro. Herb Cohen também organizou concertos no Shrine Auditorium de Santa Monica com os West Coast Experimental Pop Art Band, os Mugwumps, os Factory e os Count Five. “Psychotic Reaction” destes últimos tornou-se um exemplo bastante comemorado de punk dos anos 60.
Uma das influências mais formativas nos anos 70 foi a compilação de singles de bandas de garagem dos anos 60, Nuggets, organizada pelo crítico e guitarrista Lenny Kaye. Nos anos 80, o interesse pela breve explosão de meados dos anos 60 de grupos de brancos das faculdades, mostrou que Kaye estava apenas a aflorar a superfície; havia milhares destes grupos roufenhos, meio parvos/meio inteligentes que aprenderam as maravilhas do R&B com os Beatles e os Stones (Nuggets passou a série, com um imitador chamado Pebbles). Embora Zappa fosse conhecedor do R&B e os Soul Giants tenham passado muito tempo em clubes, muitas das músicas de Freak Out! não ficariam mal em Nuggets. Mais tarde, com a inclusão de Sugarcane Harris e Johnny “Guitar” Watson, Zappa faria mais viagens às raízes. Os Mothers eram uma banda punk dos anos 60. Se os Mothers tivessem lançado Freak Out! e depois desaparecido sem deixar rasto, seriam celebrados hoje como precursores do punk. O punk era a descoberta dos desprezados e dos ignorados – com Zappa a fazer digressões mundiais no final dos anos 70, não era muito adequado “descobrir” o seu antigo repertório (embora os ATV tenham tocado uma versão de “Why Don’t You Do Me Right”).
A primeira música de Freak Out!, “Hungry Freaks Daddy”, é dedicada a Carl Orestes Franzoni e aos “marginais da grande sociedade”. O cavernoso riff, variante daquele usado pelos Rolling Stones em “(I Can’t Get No) Satisfaction”, ocupa, estilisticamente, o papel central na canção. O solo de guitarra é tocado em tempo dobrado, uma técnica que também tornou a versão de “Louie Louie” de Kingsmen tão interessante. O som fanhoso, tipo hangar de aviões (outro recurso punk), é apoiado por vozes agrestes e ríspidas de Ray Collins e Zappa. Apesar da feroz e vertiginosa violência do solo de guitarra, o arranjo – vibrafone e fanfarra – é totalmente Mondo Hollywood. Algumas restrições financeiras fizeram com que os metais fossem tocados num brinquedo musical – o que dá à música uma agrura ofensiva e barata.
Tal como o jazz, o rock possui uma relação peculiar com Tin Pan Alley. O blues e o folk foram revisitados de modo a tirar sentimentalismo e falsidade à música, mas a necessidade de organizar material para a indústria cultural – apresentações sucessivas, canções de sucesso – significava que se tinha de fazer uma aprendizagem dos Gershwins e de Cole Porter. Paul McCartney foi particularmente astuto neste ponto de vista, escrevendo melodias que vinham directamente da Broadway. O R&B da Costa Oeste relacionava-se com Hollywood através dos seus “Sinatras sépia”: Nat King Cole, Charles Brown, Young John Watson (antes de tocar guitarra, Johnny “Guitar” Watson tocou piano e gravou um disco devastador para a Chess). O peso do blues nestas vozes transforma as harmonias espalhafatosas de Tin Pan Alley em qualquer coisa de grande efeito. Zappa odiava o trabalho ocioso e a música ociosa mas não podia evitar a herança de Sinatra quando se tratava de descobrir cantores: as vozes de doo-wop que tanto admirava inspiraram frequentemente os sons melosos das vogais de Sinatra.
Em “Ain’t Got No Heart” e “How Could I Be Such A Fool”, Ray Collins soa sinistramente como Jim Morrison. Aqueles que vêem os Mothers como uma versão californiana da Bonzo Dog Band poderão interpretar isto como paródia, mas convém lembrar que estas músicas foram gravadas um ano antes do primeiro disco de Morrison com os Doors. Zappa conhecia Morrison socialmente – e desaprovou o seu consumo de drogas, apelidando-o de “espécie de miúdo mimado das escolas académicas” – mas Morrison não era suficientemente conhecido em 1966 para merecer sátira. É mais um caso de desenvolvimento paralelo. A prestação vocal de Collins nestas canções – narcisista, portentosa, petulante – faz a Sinatra o que James Dean fez a Humphrey Bogart, substitui murmúrios de adultos por um olhar escarninho adolescente. Apesar de tudo, está mais perto de Tin Pan Alley do que do R&B. Morrison teve problemas para relacionar a sua voz com os pesados blues que admirava, e fê-lo usando uma pose sinatriana, o vocalista actor, em vez de apenas cantor. Collins faz a mesma coisa, só que, como se trata de música composta por Zappa, toda a representação está à beira de cair no ridículo: risos niilistas infiltram-se em todos os movimentos. Os Doors continuaram o projecto, fazendo discos com a nitidez de realizadores de cinema. A necessidade de uma estrutura levou os Doors a ligarem-se às velhas formas: ouvir José Feliciano a fazer sucesso com “Light My Fire” é realmente uma experiência punitiva para os apaixonados pelos Doors e a sua rebelião académica. Só Iggy Pop e os Stooges conseguiram transportar o rock para além da normal mente adolescente sem usar a ironia. Freak Out! usa ironia: toneladas. Há tanta ironia que se calhar a música é feita só disso. As notas de roda pé estão cheias de observações auto-depreciadoras: “Motherly Love” é uma “parvoíce vulgar”, “Any Way the Wind Blows” é “absurda e vulgar”, “Go Cry on Somebody Else’s Shoulder” é “muito oleosa. Não a devias ouvir. Devias usá-la no cabelo.” “Any Way the Wind Blows” foi incluída porque “em poucas palavras, é... como hei-de dizer isto?... é intelectual e emocionalmente ACESSÍVEL para ti. Ah! Talvez esteja mesmo à tua frente!”
“Ain’t Got No Heart” é uma canção de recusa que inicia uma longa lista de canções de negação do amor que põem Zappa e as feministas em rota de colisão. Nas notas, Zappa chama à canção “um resumo dos meus sentimentos sobre as relações sexuais-sociais”, Mas durante o casamento com Gail Sloatman (que durou até à sua morte) tais canções de negação do amor não pararam mais. Zappa afirma que as canções de amor são más para a saúde mental e fabricam ideais que não podem ser satisfeitos: “Ain’t Got No Heart” não é tanto um resumo dos sentimentos pessoais de Zappa como uma deliberada correcção dos clichés das músicas de amor. Zappa disse mais tarde que acreditava no amor, mas não no amor da Madison Avenue, uma afirmação que reconhece imediatamente a colonização comercial da vida privada que torna certos gestos tabus da arte radical. “How Could I Be Such A Fool” tem notas técnicas sobre o uso de diferentes ritmo.
É baseada num ritmo nanigo modificado. Chamamos-lhe Valsa Motown. Está sempre em 3⁄4 mas muda nos acontecimentos que ocorrem em cada secção. Como adolescente americano (como americano), para ti, isto não te diz nada. (Sempre me perguntei se seria capaz de escrever uma canção de amor.)
Zappa tenta educar os ouvintes para a natureza representacional da música pop, o facto de que é uma construção e não a vida real. Os constrangimentos musicais e emocionais do pop (comparados com os da música clássica ou do R&B) significam que estas ambições resultam em tensão: a distância entre as ideias de Zappa e as formas com que se deve lidar só podem ser percorridas no absurdo: As letras são frequentemente uma série de clichés que não jogam uns com os outros.
Como é que eu consegui ser tão parvo
Como é que eu consegui acreditar em todas as mentiras que tu me dizias...
Mas vai chegar a altura em que te vais arrepender do modo como
Me trataste como se eu fosse um parvo e não soubesse
As vezes que me mentiste sobre o teu amor por mim*
O narrador é parvo ou não? Ao conservar alguma dignidade para si próprio, o narrador fica atado em nós lógicos. São procedimentos como este, tentativas para fazer com que as formas convencionais das canções se auto-destruam – em vez do ódio pelas mulheres de que é acusado – que explica a frequência das suas canções de negação do amor.
A canção de amor simboliza de muitas maneiras a relação do cantor com o seu público: ao romancear o amado, o cantor expressa uma atitude em relação ao consumidor. Em relação a este assunto, a ofensa de Zappa, reiterada pela sua falta de atenção para com os argumentos feministas (uma falta de atenção que provavelmente o torna mesmo sexista – em termos de debate liberal), permite-lhe profanar as poses usuais, profanar como nunca foi feito no pop. As canções de negação do amor fazem parte da sua desconstrução formal.
Por que é que eu havia de deitar fora a vida “fixe” que tenho?
Porque, minha querida, aquilo que tens para mim não é aquilo de que eu preciso**
Mesmo em 1966, a palavra “groovy” ("fixe") aparece com aspas, enfatizando o modo como o branco se apoderou de uma palavra negra (um incómodo que Simon & Garfunkel perpetuaram em “Feelin’ Groovy”). As canções de Zappa são possibilidades de sentimentos: Zappa é um animador e não um cantor-escritor de canções. Isto explica a sua disponibilidade para usar outros cantores, é parte da sua estratégia para alcançar uma ressonância ambivalente para a chamada auto-expressão.
“You’re Probably Wondering Why I’m Here” expressa com agressividade nervosa o paradoxo da arte numa sociedade de bens de consumo.
Mas se calhar não sou eu que o devo dizer
Eles aqui só me pagam para tocar
Estás provavelmente a pensar por que é que eu estou aqui
E eu também, eu também***
“Não que isso te faça uma grande diferença”, diz Zappa no final. A canção provoca um efeito parecido a uma peça de Alfred Jarry ou Eugène Ionesco. Na secção de “notas relevantes” do disco, David Anderle escreveu: “Acho que a vossa aproximação à música coincide com as intenções exemplificadas com mais veemência nos aspectos “tragicómicos” do “teatro do absurdo”.
Samuel Beckett era considerado pelos críticos, juntamente com Jarry e Ionesco, “teatro do absurdo”, e para Adorno o exemplo perfeito de modernismo literário. O desgosto de Adorno para com o aerodinamismo dos lucros da música, as canções de sucesso da indústria cultural, pôs de parte a ideia de que alguém podia embarcar em tal ideia e mesmo assim funcionar dentro da indústria. Claro, ainda há pessoas que se refugiam nos seus confortáveis abrigos contra a “vulgaridade” dos meios de massa, mas cada vez mais descobrem que no seu isolamento não conseguem compreender os movimentos da própria arte superior contemporânea, acabando por ser bobos da subsecção da indústria cultural que recicla trabalhos artísticos do passado. Adorno não era assim: o poder da sua análise advém de uma resoluta visão da totalidade social (ou antes, uma totalidade que ele só podia ver como anti-social, administrada e opressiva). Mantendo viva, no mercado, uma consciência social cercada por prateleiras classificadas de produtos de consumo: o projecto iniciado por Freak Out! Isto foi considerado impossível por Adorno, mas o facto é que ele também considerou as políticas dos trabalhadores impossíveis.
Há outros sinais de continuidade entre o modernismo da arte superior e os Mothers of Invention para além das referências ao teatro do absurdo. A mais importante foi o aforismo de Edgard Varèse: “Os compositores contemporâneos recusam-se a morrer!” Esta frase é de um manifesto da Associação Internacional de Compositores, grupo fundado por Varèse no Liberty Club, na 40ª Rua, no Leste de Nova Iorque, a 31 de Maio de 1921. Em Julho de 1921 declararam:
O compositor é o único dos criadores contemporâneos a que é negado um contacto directo com o público. Quando o seu trabalho acaba ele é posto de parte e surge o intérprete, não para tentar compreender, mas para o julgar impertinentemente. Ao não encontrar nenhum rasto das convenções a que está habituado, irradia-o dos seus programas, acusando-o de ser incoerente e ininteligível.
Em qualquer outra área o criador entra em qualquer forma de contacto directo com o público. O poeta e o romancista através da comunicação de uma página impressa; o pintor e o escultor, as portas abertas de uma galeria de arte; o dramaturgo, a liberdade de um palco. O compositor depende de um intermediário, de um intérprete.
Como resposta à procura do público, é verdade que as organizações oficiais colocam nas programações os trabalhos novos rodeados por nomes já estabelecidos. Mas tais trabalhos são cuidadosamente escolhidos do meio das tímidas e anémicas produções contemporâneas, deixando por ouvir os compositores que representam o verdadeiro espírito do nosso tempo.
A morte é um privilégio dos vencidos. Os compositores contemporâneos recusam-se a morrer. Perceberam a necessidade de se associarem todos e lutar pelo direito do indivíduo a assegurar uma livre e justa apresentação do seu trabalho. É de uma vontade como esta que nasceu a Associação Internacional de Compositores.
O objectivo da Associação Internacional de Compositores é centralizar os trabalhos diários, agrupá-los em programas inteligíveis e organizadamente delienados e, com a ajuda altruísta de cantores e instrumentistas, apresentar esses trabalhos de modo a que revelem o seu espírito fundamental. A Associação Internacional de Compositores recusa-se a admitir qualquer limitação, tanto de vontades como de acções. A Associação Internacional de Compositores desaprova quaisquer “ismos”; nega a existência de escolas; reconhece apenas o indivíduo.
Isto tem a ver com a sobrevivência económica do compositor, não é um princípio estético, o que explica a ênfase dada ao indivíduo (os compositores e os músicos nunca gostam de ser ligados a escolas, porque isso não melhora as suas carreiras; apenas a fama individual que emana dos concertos). Zappa levou este individualismo às últimas consequências e alterou o plural “compositores contemporâneos” para o singular.
* How could I be such a fool / How could I believe all those lies you told me... / But there will come a time and you'll regret the way / You treated me as if I was a fool and didn't know / The many times you lied about your love for me
** Why should I throw away the groovy life I lead? / Cos baby what you got is sure ain't what I need
*** But maybe that's not for me to say / They only pay me here to play / You're probably wondering why i'm here / And so am I, so am I
Como tudo o resto – o uso irónico de arranjos do mundo do show business, o tributo à Sagração da Primavera, a afronta ao teatro do absurdo – Freak Out! também revela uma aguda compreensão das relações raciais. “Trouble Every Day” é um protesto em verso com rima* que segue o exemplo de Bob Dylan:
A não ser que o teu tio tenha uma loja
Sabes que cinco em cada quatro
Não farão mais
Que olhar os ratos que cruzam o soalho
E compor canções sobre ser pobre
Sopra na harmónica, miúdo*
A referência sarcástica aos blues na última frase, reúne perfeitamente a ambivalência de Zappa em relação à auto-expressão. A frase reaparecerá mais tarde em “Didja Get Any Onya” de Weasels Ripped My Flesh, enquanto se ouve grunhidos de porco a acompanhar um piano de salão. “Trouble Every Day” fala dos tumultos de Watts com uma integridade nunca ouvida no pop (até as primeiras canções de Dylan tinham tendência para ser poéticas e difusas, um vazio que durante o período cristão se tornou útil, quando as reinterpretou como declarações religiosas). Zappa mantém a forma à distância de um braço enquanto se apercebe da distância racial e política que o separa dos manifestantes.
E ele disse que era bem feito
Porque alguns deles eram brancos
E é o mesmo por toda a nação
Discriminação a preto e branco**
Por estas frases poderá parecer que Zappa adopta uma “imparcialidade” liberal (que, dada a realidade da opressão racial negra nos Estados Unidos, pode ser uma forma de racismo), mas a canção desenvolve um comentário sobre os tumultos que compreende a base económica da opressão. Sabe-se de que lado ele está. Zappa combina raiva e auto-defesa formulando de modo inesquecível:
Sabem, eu não sou preto
Mas há muitas vezes
Em que gostava de dizer que não sou branco***
Esta escrupulosa atenção para com as atitudes raciais é similar ao uso iconográfico que Zappa faz do cliché dos blues. Evita a presunção de, por exemplo, John Mayall quando tenta “cantar blues”. As políticas de Zappa – racionais e cáusticas – nunca possuíram o mesmo protesto absolutista dos Panthers (pretos ou brancos) ou dos situacionistas. Freak Out! possui o mesmo tipo de urgência e mordacidade, e fomenta tais expectativas: arte revolucionária oferecida por um não-revolucionário. Os estudiosos radicais ficaram desapontados pelas suas recentes declarações, mas se atentarmos pormenorizadamente vemos que desde Freak Out! até às “Guerras Porno” a linha de Zappa foi notavelmente consistente. Só os que sentimentalizam a arte como forma de política não conseguem perceber isto. As habilidades do caniche tiram lições políticas das ressonâncias simbólicas da arte de Zappa nas hierarquias da cultura capitalista e não nas suas entrevistas.
Um aspecto importante de Freak Out! ganhou o respeito de vários músicos de estúdio (denominados nas notas como “Auxiliares dos Mothers”), provando que este guitarrista de rock ‘n’ roll era capaz de escrever música que requeria destreza. Lowell George fez alguns comentários reveladores.
No trabalho, o Frank era um homem muito exigente. Escrevia partituras óptimas. Havia uma grande piada: os músicos de estúdio de Los Angeles, que eram todos perfeitos, foram a uma sessão dos Mothers of Invention a pensar que ia ser uma barrigada de riso. Vestiram-se todos a gozar: bermudas, ténis com os pés trocados e coisas assim. Foram à sessão e as pautas eram tão difíceis que não as conseguiam tocar. Ficaram todos assustados e saíram a dizer “Este tipo não é calão nenhum”. Nesse momento toda a gente mudou de atitude.
Zappa fez contactos importantes. Johnny Rotella (sopros de madeira) tocou mais tarde em Lumpy Gravy e The Grand Wazoo e Jerome Kessler electrificou o violoncelo para a digressão de Wazoo em 1972. Benjamin Barrett foi retratado como o contratador “Ben-Hur Barrett” na história em The Grand Wazoo; mais tarde o trombonista Ken Shroyer roubou-lhe o papel. Zappa também se pôs à prova nesta sessão – eram o tipo de músicos que combinavam a necessária mordacidade de conseguir ler partituras e improvisar ao mesmo tempo, exactamente aquilo que precisava para criar a sua terceira corrente.
* Em inglês, é claro: Unless your uncle owns a store / You know that five in every four / Won't amount to nothing more / Than watch the rats go across the floor / and make up songs about being poor / Blow your harmonica, son
** And he said it served them right / Because a few of them were white / It's the same across the nation / Black and white discrimination
*** You know people I ain't black / But there's a whole lot of times / I wish I could say I ain't white
Texto retirado do blog Fora de Cena, por Pedro Marques, que traduziu o livro de Ben Watson - The Negative Dialectics of Poodle Play. A tradução é em português de Portugal e por isso algumas palavras podem soar estranho, como o próprio título traduzido como: As Dialécticas Negativas das Habilidades do Caniche. O que no Brasil é: As Dialéticas Negativas das Habilidades do Poodle.
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